domingo, 23 de janeiro de 2022

As Girafas

 O melhor a fazer é pensar na girafa. Eu não compreendo o universo na mesma medida em que a girafa não me compreende. Diante disso espero que o universo também não incorra em tão imensurável precariedade. A girafa tem grande capacidade de amar. Quarenta e três vezes mais do que os seres humanos. Esse é o tanto quanto o seu coração é maior do que o nosso. Uma vez, estando eu em África, me disseram que a girafa tinha dois corações, inferi, então, que ela poderia ter dois grandes amores ao mesmo tempo. Socorri-me na enciclopédia, esta tão extensa quanto o seu pescoço e me certifiquei de que a girafa não tem dois corações, mas com um só coração pode ter quarenta e três amores ao mesmo tempo. A girafa está de amor até o pescoço. A girafa dá à luz em pé. A girafinha ao nascer experimenta uma verdadeira queda de seu paraíso, uma queda em linha reta de mais de dois metros de altura, mas não acontece nada de muita gravidade apesar de toda força da gravidade envolvida no ato. Tem muito bem separado o racional do emocional, a portentosa girafa, são quase dois metros de distância que separam o seu cérebro de seu coração. Ser girafa é estar sempre à beira da vertigem, é carregar consigo, todo o tempo, o próprio precipício, mas, jamais nele derrapar em razão de ficar a maior parte desse tempo com a cabeça e os chifres voltados pra o céu, a girafa gasta vinte horas de seu dia caçando folhas nas altas árvores. Pouco afeita ao rés do chão, a girafa dorme em pé, assim ela guarda permanente vigilância sobre o seu mundo e não precisa se levantar ao acordar: acorda e já está de pé, nisso economiza léguas de caminho existencial. Os antigos romanos pensavam que a girafa teria nascido do amor entre um camelo e um leopardo, mas tudo indica que foi por autogeração espontânea da natureza , já que a mim, agora, é tão difícil averiguar de onde exsurgiu a primeira girafa e como. A girafa não tem papas na língua, mas a sua língua é tão longa que lhe emprenha pelos ouvidos e os tapa. A girafa não fala, mas só ouve o que quer. E por que falo tanto na girafa? Pra mim ela não é nem a mais bonita, nem a mais inteligente das selvagens. Nem, ao menos,  tem a pouca sensualidade da zebra e é, no máximo, engraçada. A girafa sequer me comove e nem sabe que existo e eu saber que ela existe e é alheia à minha existência é apenas, pra mim, fleumático e só alimenta a minha vã e humana arrogância de saber sem ser sabida. Mas não me livra do complexo. Esse de ter um coração pequeno e pouco. Esse de estar em permanente função de realizar uma vida, esse de guardar pra si do dia o eterno espanto. Enquanto à girafa, nas savanas, basta ser o próprio encanto.