domingo, 19 de setembro de 2021


 
POR QUE A BÍBLIA, EM MEIO A TANTOS OUTROS TEXTOS ANTIGOS SEMELHANTES, FOI AQUELE QUE SE TORNOU UM TEXTO FUNDACIONAL DE NOSSA CIVILIZAÇÃO?

 Há alguns Domingos trouxe aqui o debate sobre os documentos bíblicos como registros integrantes de uma tradição literária do Oriente Próximo entre os anos 1000 antes de nossa Era e 200 da nossa Era. Apenas para refrescar-lhes as memórias citei que narrativas no livro do Gênesis tais como o Jardim do Éden, o Grande Dilúvio e a Arca de Noé, nada mais eram do que uma versão dos populares épicos sumérios Enuma Elish e Gilgamesh.

 Isto posto uma pergunta se impôs:

Por que não foram os demais textos de civilizações mais avançadas, mas sim essa miscelânea construída por um povo "insignificante" em comparação às grandes civilizações antigas,  um povo  que não ergueu pirâmides nem jardins suspensos, que não apenas fundou a nossa cultura tal como ela o é, hoje, como são a fonte das principais religiões que ainda hoje se espalham sobre o nosso planeta, do ocidente ao oriente: judaísmo, cristianismo e islamismo? 

Arrisco uma resposta provisória dividida em dois aspectos das narrativas bíblicas que corroboram para o fenômeno, adiantando que nenhuma delas diz respeito ao monoteísmo "tout court", o que seria uma resposta fácil a meu ver. Nesse post trato tão somente de um primeiro aspecto que diz, sobretudo, respeito à história do pensamento e do mundo das ideias. Vocês me acompanham?

1. Nas narrativas congêneres à Bíblia, não havia o monoteísmo, mas não só. Os deuses do politeísmo identificavam-se com as forças da Natureza. O Sol era um deus, a Lua, uma deusa, a Floresta outro deus e assim seguiam-se as deidades. Os seres humanos ocupavam uma posição de grande inferioridade e subalternização em relação tanto aos deuses quanto às forças da Natureza. O épico da Barca de Noé bem expressa essa lógica e hierarquização: Os seres humanos e as suas sobrevivências submetidas aos humores dos deuses e às intempéries naturais, in casu, a um Dilúvio. 

 Nos textos bíblicos, apesar de se tratarem das mesmas histórias, as suas versões são  revolucionárias e não apenas porque de vários deuses passou-se a narrar a existência de um só. Mas, especialmente, porque esse único Deus emancipa-se das forças da Natureza, não mais se identificando com as mesmas, mas tomando-as sob o seu poder. No entanto, há um elemento, antes considerado inferior em meio ao mundo fenomenológico, que é alçado ao centro de toda a Criação e para o qual toda a natureza existe tão somente para  servi-lo. Esse elemento, que é natural, mas passa a ocupar um locus privilegiado em relação aos demais elementos naturais, sendo, inclusive, encarregado em nomear tudo o mais que existe sobre a Terra, nada mais é do que o antes precário ser humano que pelos textos bíblicos se não é o próprio Deus, foi por ele criado à Sua Imagem e Semelhança.

O giro na história do pensamento humano a partir dessa nova concepção é radical, uma vez que o lugar do humano em meio a tudo o mais que existe passa a ser central, determinante e subalternizador desse tudo o mais. A partir dessas reflexões  podemos inferir que mesmo o teocentrismo dentro das novas concepções inauguradas pelos textos bíblicos, não deixa de ser impregnado de antropocentrismo, já que o Deus que a tudo conhece, a tudo ordena, a tudo submete e a tudo cria tem o ser humano como um seu semelhante. E foi encarnado em um ser tão humano quanto  nós, que Deus esteve entre nós.

É nessa ideia da supremacia e da prevalência do ser humano sobre todas as criaturas que está baseada a cultura e o pensamento do qual somos herdeiros e no qual continuamos enredados. Foi essa crença que se apresentou não apenas mais potente do que as demais do mundo antigo como possibilitou as formas políticas e sociais de organização não apenas do mundo ocidental quanto do Oriente Próximo. Um mundo centrado e em torno do sujeito humano.  Um tempo-destino que deixa de ser caótico e imprevisível, fora do controle até mesmo dos deuses, e passa a ser absolutamente pré-determinado. Essa hipótese, se validada, coloca o cristianismo não mais como uma ruptura com o humanismo greco-romano, mas como uma sua continuação em termos que potencializa mais que nunca o poder do humano à imagem e semelhança de Deus, ainda que tenha fomentado sociedades fortemente hierarquizadas, já que figuras de autoridade e poder como o Rei ou o Papa são escolhidos diretamente por Deus o que torna as suas instituições correspondentes e os seus poderes inquestionáveis.

Podemos aquilatar a adequação do pensamento judaico-cristão à tradição clássica, na medida em que  o pensamento judaico-cristão jamais apagou o fato de continuarmos a sermis greco-romanos, ao contrário, foi bastante alimentado pelo Platonismo.

De toda essa herança do pensamento judaico-cristão, exsurge um grande desafio: A natureza que foi a nós submetida e que teve como propósito de sua existência nos servir, hoje clama por sua sobrevivência e reconsideração. As igrejas cristãs progressistas têm proposto uma concepção de humanidade que abranja de modo igualitário, sem hierarquizações, os seres humanos e todos os demais entes naturais.

Será mera coincidência que os fundamentalismos cristãos, que fazem uma interpretação rigorosa dos textos bíblicos, não estejam levando o meio ambiente em sua merecida consideração em um ideário de exploração da natureza destituída de limites? Nos fundamentalismos cristãos não residiria, no que tange a uma ideia de absoluta subserviência da natureza em face ao Homem,  uma espécie de "Complexo de Adão"?

Que a promessa de potência, centralidade e absolutismo humano no projeto divino criacionista bíblico que contribuiu para nos fundar como civilização até os nossos dias, não seja a mesma que  nos afunde em meio a nossa arrogância adâmica, sem direito à Barca em um Dilúvio Eterno.




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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Desejo Masculino

 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO OU O LUGAR DO IMPOSSÍVEL NO DESEJO MASCULINO




A nossa cultura e as suas ideologizações insistem, de forma equivocada, a atrelar o desejo feminino ao amor idealizado dos contos de fadas, e a ancorar o desejo masculino ao real da carne e da racionalidade. Mas, o mundo da vida aponta para a direção contrária: mesmo atravessadas pelas fantasias do príncipe salvático e da história de amor com final feliz, após, principalmente, o casamento, as mulheres "caem" no real do amor, enquanto os homens, esses sim, tendem a passar toda a vida devaneando em idealizações amorosas e fantasias eróticas sem limites, ambas alimentadas pelos apelos mágicos do impossível.


São muitos os fatores que conduzem a essa dinâmica, em maior e menor grau de acordo com a história erótico-afetiva de cada um, mas, o fato é que os homens estão mais capturados pelos mitos dos contos de fadas do que possa sonhar a vã filosofia.


As mulheres são retiradas do mundo do reino das fantasias em virtude de seu próprio corpo que todo mês sangra, atracando-as no real da terra. Muitas, depois engravidam, dão à luz e nutrem a carne de sua carne com a sua própria carne. Mesmo as que nunca engravidaram, não se livraram de estarem presas ao real do corpo que para uma eventual gravidez se prepara, a cada mês. Já os homens, não. Ao contrário do que se pensa, já que seriam mais ligados ao "físico" do amor, têm bem menos, o seu desejo atravessado pelo  real  da carne nua e crua e suas contingências.  Somando-se aos aspectos biológicos, os complexos freudianos não devem ser menosprezados,  carregados que são pelas tintas do primeiro amor, esse, em nossa cultura, de impossível realização: a paixão pela mãe.


 O menino, então, desde a sua mais tenra idade, não apenas idealiza a sua princesa como, sobretudo, idealiza a si mesmo como um intrépido e ousado herói.  Um capa e espada disposto às mais atribuladas façanhas, a lutar contra os dragões mais ferozes a fim de alcançar a sua amada impossível que o espera indefesa no alto da torre de um palácio circundado por bestas-feras. 


Se esse conto de fadas  tende a ter menor apelo para as mulheres, uma vez atingida a idade adulta, ou depois de serem atravessadas pelo real da gravidez e do primeiro filho, para os homens esse mundo da fantasia, em alguma medida, é para sempre. Não é por mero machismo que lhes atraem os desafios da "conquista".  É que as dificuldades à ela inerentes são o gatilho para que eles possam encarnar as suas fantasias na pele da realidade, vestirem as suas capas de heróis, de destemidos e intrépidos conquistadores dos sete mares. Nessa aventura, mais do que a idealização da dama de difícil acesso, está a idealização do herói de si mesmo.  


E esses desafios  a serem vencidos pelo nosso herói romântico que têm o alto de uma torre a ser escalada como metáfora, traduzem-se em barreiras sociais,  barreiras territoriais, barreiras religiosas, barreiras étnicas, barreiras familiares, barreiras de estado civil (seja o dele seja o da princesa) e pasmem! Barreiras do tempo. Não à toa, o conceito de "barra" é tão caro à teoria do desejo em Lacan...


Certa feita, era eu ainda estudante de direito e passeava pelo Alto da Sé em Olinda, pus-me a conversar em atenta escuta com um rapaz que estava às voltas com os seus  desejos de amor impossível. Foi, quando então ele quis apresentar-me à sua amada. Mostrou-me a sua foto: ela estava morta. Mas, não estava morta há alguns meses ou até mesmo há alguns anos: Ela estava morta desde o século XIX! Antes de achar que o rapaz fosse louco ou perturbado, apenas tive a certeza de que a alma humana é como o universo: em contínua expansão ilimitada. Quase chorei a saudade da morta junto a ele.


O desvario do rapaz, segundo a minha hipótese,  nada mais é do que o ponto paroxístico, o ponto mais alto do desejo masculino em suas fantasias heróicas do amor impossível. E como os homens são escópicos, têm o desejo fortemente movido pelo olhar, a possibilidade de deparar-se com a fotografia de uma dama de outros tempos e por ela se apaixonar perdidamente não é conto de fadas: É uma "ameaça" constante. 


Uma dessas ameaças foi concretizada e  acabou por ter suas angústias resolvidas na escrita de um livro, cuja narrativa foi levada às telas dos cinemas. Passo a contar-lhes esse caso de amor verdadeiro. Um escritor americano de ficção, logo, um devaneador por excelência, de nome Richard Matheson, certa feita,  deparou-se com uma foto da belíssima atriz, também americana,  Maude Adams e, de imediato, foi tomado por uma paixão arrebatadora. Tudo seria mais um delicioso capítulo de amor apaixonado, se Maude não tivesse nascido em 1872  e falecido em 1953. 


Urgindo desvencilhar-se de sua angústia amorosa, ainda mais nutrida pelo fato de a fulgurante atriz nunca haver se casado, logo, uma evidência irrefutável de que passara a vida esperando-o, e debatendo-se com a impossibilidade desse amor que, a despeito de estimulá-lo era incontornável, o escritor escreveu um romance de seu romance amoroso. Nele, o personagem masculino de seu mesmo nome, Richard, ao deparar-se com a foto de uma bela e outrora famosa atriz em seu tempo e por ela apaixonar-se, toma por obstinada aventura, empreender uma viagem no tempo de modo a ir ao seu encontro e realizar esse amor.  Essa empresa passa a  ser a única razão de sua vida, perdendo o sentido, todo o resto. O livro foi publicado com o título "Somewhere in Time" e transposta a sua fábula para as telas dos cinemas. Tendo sido a sua narrativa baseada em um sentimento real do autor, o sucesso do projeto foi garantido e atemporal.


Sucesso garantido e atemporal, sobretudo entre os homens, que se identificam com o herói romântico e com os seus impossíveis. Homens cujos desejos para sempre sonham acordados em ouvirem sussurrar, de suas camadas mais profundas, a bela de seus passados. Que a despeito dos dragões a serem vencidos, do alto de uma convidativa torre, maviosamente lhes dão a irresistível ordem, para eles, indemissível: "Come back to me"...

terça-feira, 7 de setembro de 2021

 QUE TAL ESCREVERMOS A NOSSA HISTÓRIA COMO ELA FOI, NO GÊNERO FEMININO, E PROCLAMARMOS A FALÊNCIA DO MODELO MASCULINO MONTADO EM   CAVALOS E CONGÊNERES E EMPUNHANDO ARMAS?





7 de SETEMBRO: Dia de celebrarmos Dona LEOPOLDINA!


Dona Leopoldina era, antes de tudo, uma acreditada diplomática dos Habsburgos. A sua missão era a expansão do poder de sua família para baixo da linha do Equador. A crise política pela qual passava o Brasil poderia levar à retalhação de seu território com a formação de várias Repúblicas independentes, como ocorria com o restante da América Latina, o que não atendia aos interesses do Império Austríaco. Por sua vez, Leopoldina uma poliglota que rapidamente aprendeu a falar e escrever o português, sentia-se irmanada com a causa e o povo brasileiro.


 Leopoldina foi talhada e esmeradamente educada para suas missões políticas de Embaixadora. Por isso agiu adequadamente e rápido, reunindo o Conselho de Estado e decretando a separação do Brasil de Portugal no dia 02 de setembro de 1822, tudo de acordo  com a sua genuína simpatia com a causa brasileira e os interesses que representava. 


Já Dom Pedro... Diante dos atos assinados por Leopoldina não teve escolha senão a de, espada em punho, proclamar a independência...

domingo, 5 de setembro de 2021

BÍBLIA, LITERATURA, VOCÊ, EU E OS NÓS DO MUNDO

 BÍBLIA, LITERATURA, VOCÊ, EU E OS NÓS DO MUNDO



São fascinantes e intensos os estudos dos textos bíblicos que os situam em uma tradição literária do Oriente Próximo bem anterior à escrita dos 24 documentos  que constituem a Bíblia Hebraica a qual denominamos de Antigo Testamento. Esses estudos se iniciaram em meados do século XIX a partir de descobertas arqueológicas que trouxeram à luz do sol, obras épicas, poemas e leis que são fontes primaciais para os mitos, prescrições e histórias bíblicas que foram escritas no decorrer dos séculos da era antiga, especialmente entre os anos 1000 a 160 antes de nossa Era (a.C) por diversos autores das mais variadas regiões ocupadas pelas tribos israelitas. 


O povo israelita, um pequeno povo que não erguera uma grande civilização como aquelas dos egípcios e dos mesopotâmios, junto aos sumérios, acadeus, babilônios, hititas e fenícios, compartilhavam de bens culturais e tradições semelhantes, dentre essas, a tradição literária. Ao cotejarem-se esses textos redivivos graças aos esforços arqueológicos, com os textos bíblicos, restou incontroverso que esses eram águas que escorriam daquelas fontes remotas e não que eram oásis de geração espontânea em meio a um deserto cultural. 


Poderíamos citar alguns exemplos. A cosmogonia constante do livro do Gênesis de 1 a 11, é uma atualização do Épico babilônico conhecido como Enuma Elish. A história do primeiro casal de homem e mulher no Jardim do Éden apresenta claras afinidades com o Gilgamesh, um Épico assírio e babilônico. O Grande Dilúvio e a Arca de Noé nada mais é do que uma versão para um dos mais populares contos da tradição épica da Mesopotâmia, intitulado de Atrahasis que, por sua vez, é muito similar ao Ziusudra,  um conto sumério escrito há mais de 3.000 anos antes de nossa Era Comum!


Esse exercício "crítico" literário, por si só, esgotaria uma pretensa exegese desses textos que constituem o arcabouço central para a fundação da nossa civilização ocidental judaico-cristã. Mas, algo além me inquietou ao debruçar-me sobre o tema. 


E a minha inquietação levou-me a duas perguntas fundamentais: 


Por que não foram os demais textos originários das civilizações mais avançadas, mas sim essa miscelânea construída por um povo "insignificante" em comparação às grandes civilizações antigas,  um povo  que não ergueu pirâmides nem jardins suspensos, que não apenas fundou a nossa cultura tal como ela o é, hoje, como são a fonte das principais religiões que ainda hoje se espalham sobre o nosso planeta, do ocidente ao oriente: judaísmo, cristianismo e islamismo? 


Quais os maiores impactos na relação dos seres humanos consigo mesmos, com o meio ambiente e no seu modo de pensar, acarretados pela prevalência do ponto de virada, revolucionário, dos documentos israelitas na cultura  ocidental vindoura que fez com que a Bíblia dos Hebreus se emancipasse da tradição literária antiga, qual seja, o monoteísmo?

Já adiantando que apenas o monoteísmo não seria o suficiente para afirmar essa supremacia haja vista o Direito que até hoje aplicamos ser de origem Romana e laica, e forjado, inicialmente, em uma cultura politeísta.

Claro que essas perguntas dariam uma tese, mas tentarei articular algumas hipóteses em um próximo post...rs


Bom domingo! E Fé no mundo e Fé na vida, afinal:

 

"O Senhor viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom".