quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Desejo Masculino

 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO OU O LUGAR DO IMPOSSÍVEL NO DESEJO MASCULINO




A nossa cultura e as suas ideologizações insistem, de forma equivocada, a atrelar o desejo feminino ao amor idealizado dos contos de fadas, e a ancorar o desejo masculino ao real da carne e da racionalidade. Mas, o mundo da vida aponta para a direção contrária: mesmo atravessadas pelas fantasias do príncipe salvático e da história de amor com final feliz, após, principalmente, o casamento, as mulheres "caem" no real do amor, enquanto os homens, esses sim, tendem a passar toda a vida devaneando em idealizações amorosas e fantasias eróticas sem limites, ambas alimentadas pelos apelos mágicos do impossível.


São muitos os fatores que conduzem a essa dinâmica, em maior e menor grau de acordo com a história erótico-afetiva de cada um, mas, o fato é que os homens estão mais capturados pelos mitos dos contos de fadas do que possa sonhar a vã filosofia.


As mulheres são retiradas do mundo do reino das fantasias em virtude de seu próprio corpo que todo mês sangra, atracando-as no real da terra. Muitas, depois engravidam, dão à luz e nutrem a carne de sua carne com a sua própria carne. Mesmo as que nunca engravidaram, não se livraram de estarem presas ao real do corpo que para uma eventual gravidez se prepara, a cada mês. Já os homens, não. Ao contrário do que se pensa, já que seriam mais ligados ao "físico" do amor, têm bem menos, o seu desejo atravessado pelo  real  da carne nua e crua e suas contingências.  Somando-se aos aspectos biológicos, os complexos freudianos não devem ser menosprezados,  carregados que são pelas tintas do primeiro amor, esse, em nossa cultura, de impossível realização: a paixão pela mãe.


 O menino, então, desde a sua mais tenra idade, não apenas idealiza a sua princesa como, sobretudo, idealiza a si mesmo como um intrépido e ousado herói.  Um capa e espada disposto às mais atribuladas façanhas, a lutar contra os dragões mais ferozes a fim de alcançar a sua amada impossível que o espera indefesa no alto da torre de um palácio circundado por bestas-feras. 


Se esse conto de fadas  tende a ter menor apelo para as mulheres, uma vez atingida a idade adulta, ou depois de serem atravessadas pelo real da gravidez e do primeiro filho, para os homens esse mundo da fantasia, em alguma medida, é para sempre. Não é por mero machismo que lhes atraem os desafios da "conquista".  É que as dificuldades à ela inerentes são o gatilho para que eles possam encarnar as suas fantasias na pele da realidade, vestirem as suas capas de heróis, de destemidos e intrépidos conquistadores dos sete mares. Nessa aventura, mais do que a idealização da dama de difícil acesso, está a idealização do herói de si mesmo.  


E esses desafios  a serem vencidos pelo nosso herói romântico que têm o alto de uma torre a ser escalada como metáfora, traduzem-se em barreiras sociais,  barreiras territoriais, barreiras religiosas, barreiras étnicas, barreiras familiares, barreiras de estado civil (seja o dele seja o da princesa) e pasmem! Barreiras do tempo. Não à toa, o conceito de "barra" é tão caro à teoria do desejo em Lacan...


Certa feita, era eu ainda estudante de direito e passeava pelo Alto da Sé em Olinda, pus-me a conversar em atenta escuta com um rapaz que estava às voltas com os seus  desejos de amor impossível. Foi, quando então ele quis apresentar-me à sua amada. Mostrou-me a sua foto: ela estava morta. Mas, não estava morta há alguns meses ou até mesmo há alguns anos: Ela estava morta desde o século XIX! Antes de achar que o rapaz fosse louco ou perturbado, apenas tive a certeza de que a alma humana é como o universo: em contínua expansão ilimitada. Quase chorei a saudade da morta junto a ele.


O desvario do rapaz, segundo a minha hipótese,  nada mais é do que o ponto paroxístico, o ponto mais alto do desejo masculino em suas fantasias heróicas do amor impossível. E como os homens são escópicos, têm o desejo fortemente movido pelo olhar, a possibilidade de deparar-se com a fotografia de uma dama de outros tempos e por ela se apaixonar perdidamente não é conto de fadas: É uma "ameaça" constante. 


Uma dessas ameaças foi concretizada e  acabou por ter suas angústias resolvidas na escrita de um livro, cuja narrativa foi levada às telas dos cinemas. Passo a contar-lhes esse caso de amor verdadeiro. Um escritor americano de ficção, logo, um devaneador por excelência, de nome Richard Matheson, certa feita,  deparou-se com uma foto da belíssima atriz, também americana,  Maude Adams e, de imediato, foi tomado por uma paixão arrebatadora. Tudo seria mais um delicioso capítulo de amor apaixonado, se Maude não tivesse nascido em 1872  e falecido em 1953. 


Urgindo desvencilhar-se de sua angústia amorosa, ainda mais nutrida pelo fato de a fulgurante atriz nunca haver se casado, logo, uma evidência irrefutável de que passara a vida esperando-o, e debatendo-se com a impossibilidade desse amor que, a despeito de estimulá-lo era incontornável, o escritor escreveu um romance de seu romance amoroso. Nele, o personagem masculino de seu mesmo nome, Richard, ao deparar-se com a foto de uma bela e outrora famosa atriz em seu tempo e por ela apaixonar-se, toma por obstinada aventura, empreender uma viagem no tempo de modo a ir ao seu encontro e realizar esse amor.  Essa empresa passa a  ser a única razão de sua vida, perdendo o sentido, todo o resto. O livro foi publicado com o título "Somewhere in Time" e transposta a sua fábula para as telas dos cinemas. Tendo sido a sua narrativa baseada em um sentimento real do autor, o sucesso do projeto foi garantido e atemporal.


Sucesso garantido e atemporal, sobretudo entre os homens, que se identificam com o herói romântico e com os seus impossíveis. Homens cujos desejos para sempre sonham acordados em ouvirem sussurrar, de suas camadas mais profundas, a bela de seus passados. Que a despeito dos dragões a serem vencidos, do alto de uma convidativa torre, maviosamente lhes dão a irresistível ordem, para eles, indemissível: "Come back to me"...

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